Primeiramente gostaria de cumprimentar todas as pessoas participantes da mesa e da plateia. É sempre muito bom retornar à UNESP, instituição que tenho o prazer e orgulho de carregar em meu histórico acadêmico, onde tenho proximidade até hoje no campus de Pres. Prudente, FCT.

Fui convidado para tarzer à mesa o tema como a democratização do conhecimento em dados pode impactar a sociedade e os mercados. Embora atue com educação popular há mais de 5 anos, nunca formalizei meus pensamentos a respeito, então, agradeço a oportunidade, tanto para reflexão, mas também, de aprendizado e possíveis provocações.

Enquanto educador, minha preocupação é com o indivíduo, primordialmente antes mesmo de me referir “a sociedade e o mercado”, como o título desta seção propõe. Sou motivato pela escritora anarquista e feminista, Emma Goldman em “O indivíduo, a sociedade e o Estado”:

“Correr 150km/h não é prova de civilização. É pelo indivíduo, autêntico modelo social, que se mede nosso grau de civilização; é por suas faculdades individuais, pelas possibilidades de ele ser livremente o que é, de desenvolver-se e progredir sem intervenção da autoridade coercitiva e onipotente.”

Este é um interessante paralelo que Emma faz entre os avanços tecnológicos e o desenvolvimento e a liberdade do indivíduo. Essa citação me fez refletir sobre como o letramento digital pode impactar o desenvolvimento individual e social, especialmente no contexto da educação popular.

A definição que encontrei para “letramento digital”, foi de Renata Aquino: “Letramento digital significa o domínio de técnicas e habilidades para acessar, interagir, processar e desenvolver multiplicidade de competências na leitura das mais variadas mídias. Um indivíduo possuidor de letramento digital necessita de habilidade para construir sentidos a partir de textos que mesclam palavras que se conectam a outros textos, por meio de hipertextos, links e hiperlinks; elementos pictóricos e sonoros numa mesma superfície (textos multimodais). Ele precisa também ter capacidade para localizar, filtrar e avaliar criticamente informação disponibilizada eletronicamente e ter familiaridade com as normas que regem a comunicação com outras pessoas através dos sistemas computacionais.”

Confesso que fiquei ligeiramente incomodado. Ainda que a definição contemple a avaliação crítica de informações, no geral, me parece que o letramento digital transforma o indivíduo em usuário de computadores.

Uma outra definição, mais breve, de Buzato e Fonseca e: “conjunto de conhecimentos que permite às pessoas participarem nas práticas letradas mediadas por computadores e outros dispositivos eletrônicos no mundo contemporâneo”.

Reforçando a ideia anterior.

Mas será isso mesmo? Voltando a Emma, são essas as “faculdades individuais e possibilidade de ser livremente o que ele é” que ela estava se referindo ao nosso avanço enquanto civilização?

Isto é, a habilidade de apertar os botões certos, preencher os formulários sem erros, baixar aplicativos, realizar transações online, enviar e receber mensagens, evitar cair em golpes e mais um punhado de outras coisas, é o que libertará o indivíduo?

Me desculpe se estou sendo um pouco reducionista em relação às definições anteriores. Foi até por este motivo que comecei a buscar mais detalhes para entender melhor o termo “letramento”, me deparando com um texto de Magna Soares em “Letramento: um tema em três gêneros”:

“Letramento, por sua vez, refere-se ao resultado do desenvolvimento da ação contínua, não linear, multidimensional e ilimitado, para além desta aprendizagem básica do saber ler e escrever, adquirindo, desta forma, um grupo social ou um indivíduo inserido nas práticas de letramento escolar ou não, um novo estado ou uma nova condição ‘nos aspectos cultural, social, político, linguístico, psíquico.”

Aqui, já vemos que o letramento em si, vai além de habilidades técnicas, englobando outros aspectos, em que acredito que acaba ampliando a noção de liberdade individual e desenvolvimento. Ou seja, não se limita ao “apertar botões”, mas sim, que o indivíduo possa participar criticamente da sociedade digital com suas ideias, contexto social e político.

Vale dizer que no texto de Magna, ela desenvolve a distinção entre “alfabetização” e “letramento”. O que nos leva à Paulo Freire sobre “alfabetização”: “a capacidade do indivíduo organizar reflexivamente seu pensamento, desenvolver uma consciência crítica e introduzir-se num processo real de democratização da cultura e da libertação”.

Nos dias atuais, com a transformação do indivíduo em usuário letrado digital, é de extrema importância estendermos a ideia de “consciência crítica” também às ferramentas que temos disponíveis e de acesso facilitado na internet. Isto é, mais do que ter a capacidade de avaliar uma informação disponível, mas tambem ter crítica à quem ou o que gera e trata a informação. Alguns pontos de atenção sobre esta questão:

Nossos dados pessoais são criados, armazenados e processados 24 horas por dia; Quatro das cinco maiores empresas do mundo são da área de tecnologia com grandes iniciativas na área de dados e IA. Nenhuma delas é brasileira; Governos estão expandido programas de vigilância (PRISM, Pegasus, FinSpy, SORM, etc);

Novamente retorno à Emma, como podemos nos “desenvolver e progredir sem intervenção da autoridade coercitiva e onipotente”, se atualmente, tais ferramentas coletam nossos dados massivamente, sabendo mais a nosso respeito do que nós mesmos? Somos influenciados e orientados sutilmente todos os dias por algoritmos. Seja pela concessão de crédito, rankeamento de resultados de buscadores, feed nas redes sociais, relógios inteligentes, automação em processos seletivos e portarias com identificação por biometria. Além, é claro, do advento mais recente como as LLMs para linguagem natural, se mostrando ainda mais acessíveis e escaláveis.

Agora, lembro a não existência da neutralidade destas ferramentas. Cada empresa desenvolvedora possui seus próprios interesses, que, não necessariamente, estão alinhados aos interesses do indivíduo (ainda que ele mesmo não tenha consciência disso). Por isso, a importância da consciência crítica, além da habilidade técnica para uso das ferramentas.

É aqui que mora o nosso trabalho, enquanto educadores, finalmente! Novamente, não podemos separar a técnica da crítica em relação às ferramentas, uma vez que essas mesmas possam servir como libertação, mas também coerção e vigilância. Não é possível desassociar uma coisa da outra. A partir do letramento digital e consciência crítica, podemos finalmente falar sobre impacto da democratização do conhecimento em dados.

Este é o próximo degrau, onde o indivíduo passa por mais uma transformação, deixando de ser apenas usuário, tornando-se criador/desenvolvedor. Com as habilidades e domínio das ferramentas necessárias, o indivíduo tem a chance de mudar não apenas a sua realidade por meio de seu próprio trabalho, mas também, transformar seu território e a vida das pessoas de sua comunidade.

Alguns exemplo materiais dessa discussão:

Mapeamento de cozinhas solidárias. Uso de tecnologia para melhorar a distribuição de alimentos e outros recursos em momentos de crise, como no caso das enchentes do Rio Grande do Sul; Uso de dados públicos para reinvidicar direitos, como moradia, saneamento básico, distribuição de alimento, segurança pública e demais melhorias em serviços públicos como transporte, mobilidade urbana e educação. Alguns exemplos: Brasil.IO, Operação Serenata de Amor e Open Knowlegde Brasil.

Saúde pública, com a democratização não apenas do ensino, mas dos próprios dados, os profissionais da área da saúde tem condições de aperfeiçoarem diagnósticos, seja pelo uso de algoritmos melhores, mas também pela própria associação dos dados observados na parte clínica. Bem como a decisão de melhores tratamentos com efeitos estatisticamente significativos. Algo que foi extremamente fundamental no momento que vivemos de pandemia anos atrás. Na área da agricultura, uma das mães da experimentação estatística, temos a Embrapa, com missão de desenvolver e disseminar tecnologias para a agricultura e a pecuária, visando aumentar a produtividade, a sustentabilidade e a competitividade do setor agropecuário brasileiro, impactando diretamente na vida de milhões de pessoas.

Embora hajam mais tantos outros exemplos do impacto deste tema na sociedade e mercado como um todo, acredito que estes apresentados sejam suficientes para convencer vocês.

Como último exemplo, o qual tenho muito carinho, gostaria de falar um pouco sobre educação para crianças, adolescentes e adultos em situação de vulnerabilidade social. Um trabalho que ocorre tanto no presencial, mas também de forma remota, alcançando milhares de pessoas no Brasil e além. É o caso de algumas organizações populares como o Instituto Aaron Swartz, PerifaCode e Núcleo de Tecnologia MTST, para citar alguns.

No meu caso particular com o Téo Me Why, temos um trabalho diário, transformando a vida de milhares de pessoas, não apenas com o letramento digital, mas também com conversas sinceras sobre o mercado de trabalho, carreira e consciência no uso das ferramentas computacionais e analíticas. Em 2024, estivemos ao vivo por mais de 560 horas, contando com mais de 57.000 pessoas distintas participando de nossos cursos, projetos e bate papos ao vivo. O resultado disso são pessoas engajadas com o mundo dos dados, compartilhando suas conquistas no mercado de trabalho e realizações pessoais.

É incrível perceber o efeito que o ensino tem na vida das pessoas. Me sinto honrado de participar disso tudo e poder compartilhar com vocês um pouco desse trabalho incrível que estamos realizando nas trincheiras do mundo digital. Não há nada mais gratificante do que contribuir na formação de pessoas que há tempos estavam sem perspectiva e à margem da sociedade.

Acredito que esse é o real e importante impacto que temos na sociedade e no mercado com a democratização do conhecimento em dados. Isto é, pessoas assumindo as rédeas de sua própria vida, mudando seu destino, tornando o mundo onde vivemos um lugar melhor.

Agradeço imensamente o espaço, foi um privilégio explorar este pontos em um lugar tão especial para minha formação. Espero que juntos, possamos seguir nesta direção, emancipando o conhecimento na área de tecnologia e dados. Obrigado.