Por qual classe eu luto?
A cada novo 1º de maio, me vejo mais reflexivo e também revoltado. De certa forma, até ansioso e um pouco impotente. Se o passar dos dias me faz esquecer a qual classe pertenço, esse dia, com certeza, me relembra.
Não sou uma pessoa que passou por grandes dificuldades durante a infância, como falta de alimento ou saneamento básico. Precisei ajudar minha mãe de maneira bem pontual, vez ou outra, sem a necessidade de abandonar os estudos ou coisa do tipo. Era da classe média, média mesmo.
Eu vivia dois mundos. Na escola sofria bullying por ser um dos alunos mais humildes da classe, sem o tênis ou acessórios e a geração de vídeo games que adolescentes da época tinham. Por outro lado, no meu bairro, com colegas de rua, eu era visto como playboy, justamente por meus pais terem condições de me darem uma ótima condição de ensino e nunca passar necessidades.
Embora isso sempre fosse muito confuso na minha cabeça, me recordo que o incômodo maior era em relação às humilhações constantes na escola. Sentimento amargo de não poder revidar as agressões físicas e verbais, além de toda panelinha e exclusão. Eu não tinha tanta clareza disso na época, mas seria impossível pertencer àquele grupo. E hoje, me sinto bem por não estar lá.
Meus pais sempre me disseram que eu não chorava, mesmo depois de broncas e até algumas palmadas. Mais velho, em uma consulta com homeopata, ele perguntou o que me fazia chorar. Injustiça, injustiça me faz chorar de raiva.
Era assim que eu me sentia. Durante a minha adolescência toda me senti injustiçado por não ter capacidade de reagir ao que eu sofria. Transformei esse sentimento em uma rebeldia boba e completamente sem foco. Boba pelo menos aos meus olhos de hoje, mas que possivelmente foi a chama inicial para o que sinto hoje.
Não tinha condições de direcionar melhor essa raiva. Na verdade, eu nem sabia o que fazer com ela.
Eu levei muito tempo para desenvolver em algo que fizesse sentido para mim. Foi por acaso que entrei na Estatística. Não foi planejado. Mas ao longo do processo as coisas começaram a fazer mais sentido e uma boa dose de hacktivismo deixaram algumas ideias mais claras.
Neste tempo, pude refletir sobre meus acessos e tudo que meus pais puderam me fornecer até ali. Entendi que aquilo era o básico, não era um privilégio, era um direito! E pior! A esmagadora maior parte da população nunca vai ter esse acesso.
Isso me incomodou de uma maneira tão grande, que despertou uma raiva ainda maior no meu coração. Tudo ficou tão claro na minha cabeça. Eu conseguia me ver em uma linha e a distância absurda que eu estava das pessoas do meu colégio (fazendeiros, donos de redes de posto de gasolina, consultórios médicos, empresas de viação, faculdades particulares, etc), e o quão próximo eu estava da galera que me achava playboy.
Absolutamente um mísero erro ou decisão cagada que meus pais fizessem, acabaria com qualquer acesso à educação que eu pudesse ter. Só fui compreender isso quando adulto.
Seguido da raiva, me perguntei se eu poderia agir a respeito. Mesmo me sentindo tão pequeno, sem poder fazer nada a respeito, lembrei que eu tenho condições de ensinar outras pessoas o que eu sei. Quem sabe esse conhecimento possa ajudar. Quem sabe, esse acesso que tive à universidade pública possa ser útil para mais pessoas que nunca terão a chance de atravessarem a porta de uma universidade.
Assim, ficou claro para mim a qual classe eu pertenço, bem como por qual classe eu luto e faço o meu trabalho. É um trabalho de formiguinha, sem glamour, sem gatilhos mentais, sem apelações ou promessas. É um trabalho com foco em transformar vidas e gerar mini explosões “entendi porra!” na cabeça de quem está aprendendo.
É um trabalho que busca a libertação e emancipação.
Me convenço ainda mais por quem eu luto ao fazer a seguinte pergunta: “qual classe precisa se emancipar?”
Hoje, quando sinto raiva ou vontade de chorar, não fico mais paralisado. E ajo! Eu faço! Eu enfrento! Ainda que seja pouco, ainda que seja insuficiente. Isso porque eu entendo o meu propósito e a direção que estou seguindo.
Se estou sendo produtivo e entregando tanto material de qualidade para a comunidade, é porque essa raiva e vontade pela mudança me move. Isso me arde por dentro e eu tenho que colocar para fora, materializando em aulas, treinamentos, projetos e até textos.
E claro que a minha expectativa é que tudo isso ajude a maior quantidade de pessoas possível. Se essa é a minha luta, tenho, sim, interesse que mais e mais pessoas possam conhecer meu trabalho e fazerem uso do meu conteúdo.
Não vou parar de lutar e acreditar. Espero que você também não.